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UMA PLANESWALKER AZUL
"Magic, cultura pop e autismo"
Por
16/08/2019 18:05 - 16.086 visualizações - 41 comentários
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Na última semana um artigo intitulado “Why Magic: The Gathering is a Good Game for Children With Autism”, que foi publicado no site britânico ManaLeak, tratou rapidamente do potencial do uso de Magic: The Gathering na educação de crianças autistas.

O texto me interessou, pois:
1) Sou pesquisador da área de Fármacos e Medicamentos, e um dos temas que venho trabalhando é exatamente o autismo;
2) Sou jogador de Magic;
3) E o mais importante: sou pai de um menino com este espectro (o quê inclusive, me fez começar a pesquisar sobre o assunto).

Por questões de curiosidade pessoal e até mesmo científica, me interessei em verificar o que eu poderia encontrar em algumas bases de dados e de pesquisa (Google incluído) o que existe de artigos, trabalhos, notícias, etc, que envolvessem os termos “Magic: The Gathering” e “autismo”. Página vai, página vem, e encontro no site Daily Geekette o texto “A Gathering For All: Magic: The Gathering’s Autistic Planeswalker”, escrito por Elisabeth Chapin, que me fez entender porque no primeiro artigo que citei lá no começo foi utilizada uma imagem da planeswalker Narset: PORQUE ELA É AUTISTA!!! (Embora relendo depois, isto era comentado embaixo da figura).


  

Segundo Doug Bayer - escritor e designer de MTG - a intenção é transmitir exatamente essa ideia. Em seu site pessoal, “A Voice for Vorthos” ele respondeu uma pergunta de um fã sobre esta possibilidade, devido às características da personagem que ele percebeu lendo o conto “Enlightened” (o leitor também se declarou autista, e por isso teria percebido). Prontamente, ele teve esta resposta:
 

“Essa foi a intenção, sim. A parte mais importante do personagem de Narset é sua incrível mente, que é central para seu potencial como um poderoso Planeswalker e como uma perseguidora do conhecimento - mas acontece que ela processa informações e insere de forma diferente de muitas outras pessoas. Os habitantes de Tarkir podem não ter um termo para o espectro do autismo ou serem neurodivergentes ou neuro-atípicos, mas esses termos a descreveriam corretamente. Nesta linha do tempo, ela não é clã Jeskai, mas não importa as circunstâncias, ela não soltou seu compromisso de buscar seu próprio caminho para a sabedoria e a verdade. Parabéns ao membro da equipe criativa Kimberly Kreines por explorar esse aspecto de Narset em sua história”.
 

Isto, no final das contas, não pode realmente ser considerado uma surpresa. Especialmente no Magic, que há muito tempo trabalha a inclusão de pessoas diversas dentre seus personagens, uma característica reconhecida como positiva pela maior parte de seus praticantes. De qualquer modo, o tema autismo vem aparecendo cada vez mais na mídia pop já fazem alguns anos. Mas isto não é sem motivo: Atualmente já se estima que cerca de 1 a cada 58 crianças nascidas nos EUA apresentam algum grau de inclusão no chamado Transtorno do Espectro Autista (TEA), um quadro que já deixou se ser “raro” há muitos anos.
Estudos realizados nos EUA e na Inglaterra indicam que o impacto financeiro de uma única pessoa autista sobre a economia durante todo o seu ciclo de vida pode chegar a R$ 12,16 milhões no primeiro e R$ 21,7 milhões no segundo país (sim, você leu direito: MILHÕES). Isto se deve principalmente a perda da capacidade produtiva da pessoa e, de seus familiares - que muitas vezes precisam deixar empregos para se dedicar aos cuidados totais ou parciais destes indivíduos, deixando de gerar divisas pelos seus trabalhos, pagando menos impostos e também tendo maior necessidade de atendimento por serviços públicos de saúde já que os tratamentos atualmente disponíveis para o TEA são reconhecidamente caros.

 

A frequência de personagens autistas, ou que possuem características altamente relacionadas com o autismo - algumas vezes até mesmo exagerado (não pelo lado ruim, de modo geral) - em filmes, séries e quadrinhos vem aumentando. Provavelmente o personagem autista ainda mais conhecido é Raymond Babbitt, interpretado por Dustin Hoffman (que ganhou o Oscar por sua atuação) no filme “Rain Man” (também vencedor do Oscar), já no longínquo ano de 1988. Em tempos recentes, dentre os personagens mais conhecidos que já foram relacionados com autismo, mas não confirmados, podemos citar o Dr. Gregory House, do seriado “House”, e principalmente o preferido de todos Sheldon Cooper, de “Big Band Theory”. Mas como personagens declaradamente autistas podemos citar o Dr. Shaun Murphy, da série “The Good Doctor”, Sam Gardner, do seriado da Netflix “Atypical” (praticamente um curso sobre o que é o dia-a-dia de uma família com uma pessoa autista, e também o que passa pela cabeça de uma pessoa com autismo leve), a garotinha Julia, da "Sesame Street", a indiana Symmetra, do jogo "Overwatch", e o novo personagem André, dos quadrinhos da "Turma da Mônica".

André é um personagem que apareceu inicialmente em uma história institucional dos Estúdios Maurício de Souza, e que agora vai virar personagem secundário fixo.
 

Cada um destes personagens, incluído nossa Narset, apresenta graus diferentes de autismo. Por exemplo Sam, ele conversa, trabalha, tem quase o dia-a-dia de uma pessoa neurotípica, embora lute o tempo todo quanto aos impulsos decorrentes de sua condição no espectro e para melhorar sua relação com outras pessoas, enquanto Fábio e Raymond Babbitt podem ser enquadrados no outro extremo do espectro, as condições mais severas, até “clássicas” para a população em geral, onde a pessoa está reclusa em seu próprio mundo, não se comunica adequadamente, e nem mesmo tem interesse em relações interpessoais, precisando de acompanhamento quase o dia todo.
Estes casos exemplificam bem o motivo de hoje o autismo ser chamado de ESPECTRO: Existem muitos e muitos graus diferentes de autismo, dos muito leves, quase imperceptíveis (inclusive, é fato concreto que muitos autistas podem ter uma vida praticamente normal sem nunca ficar sabendo de sua condição) até aquele grau onde, como comentado, a pessoa tem sua mobilidade altamente prejudicada devido ao desenvolvimento inadequado de seu potencial neuromotor (inclusive, muitos autistas graves sofrem comumente de convulsões). Da mesma forma, enquanto alguns autistas possuem altas habilidades em alguns campos do conhecimento (os famosos autistas “gênios”, os mais popularizados na cultura pop, como o Sheldon), outros podem apresentam alto déficit intelectual (vulgarmente ainda denominado de retardo mental) devido a diversos fatores, incluindo a dificuldade de concentração e de aprendizado decorrente da condição.
 

As causas do Autismo (ou melhor, Autismos) ainda não são conhecidas. Em algumas síndromes genéticas, como a Síndrome de Rett ou a Esclerose Tuberosa, ela aparece com uma co-morbidade (basicamente, um sintoma ou doença que surge devido a outro sintoma ou doença já existente). Mas cerca de 85% ou mais dos casos não apresentam relação com qualquer mutação genética ou outra doença.
Ou seja, a pessoa não TEM Autismo, ela É Autista.

Dentre muitas linhas de pensamento, algumas defendem que o Autismo é simplesmente que o um tipo de neurocaracterística dentre a população como um todo: Como uma pessoa ser branca ou negra, ou loira ou ruiva, existe os que se enquadrariam como “neurotípicos” (os nossos “normais”) e os que não, não sendo uma doença ou síndrome.
O que coloca a criança (pois dentro do que já se sabe, todo Autista já nasce Autista) no espectro ainda é desconhecido, e diversas teorias existem: Hereditariedade; Mutações aleatórias; Influência do ambiente sobre a genética da criança; Infecções bacterianas e virais da mãe durante a gestação; Contato com pesticidas agrícolas; Medicamentos; Conservantes de alimentos; Metais pesados; Álcool; Drogas de abuso, e muitos outros. Todos explicam alguns casos, mas nenhum explica todos os casos, e por isso é difícil se pensar no momento em uma forma de real prevenção do quadro.

 

Fato é que, sem a estimulação e o apoio adequados, isto acaba por não fazer diferença para a pessoa que está no espectro. A identificação, ou diagnóstico, precoce é primordial para que se determine o mais cedo possível. O melhor é seguir o protocolo para a estimulação adequada (com ou sem medicamentos de apoio), até porque não existe um tratamento padrão para o quadro, provavelmente devido exatamente a serem quadros diversos que podem levar uma pessoa para o espectro. Uma criança autista precisa de acompanhamento médico (preferencialmente, de um neuropediatra com experiência nesta condição), psicoterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional... Tudo isso só PRA COMEÇAR! Estes profissionais, preferencialmente em comum acordo, devem definir qual o melhor protocolo de acompanhamento para cada criança em especial. Dependendo da pessoa, outras terapias de apoio como musicoterapia, equinoterapia, esportes, dançoterapia, arteterapia, e outras, podem apresentar ótimos resultados. Os resultados, de modo geral, são visíveis de acordo com a evolução da pessoa, com ela começando a se comunicar melhor (falando ou usando métodos alternativos), buscando mais o contato social, lendo, escrevendo, e conseguindo melhorar os seus processos de AUTOCUIDADOS (basicamente, conseguir comer, se vestir, se lavar, fazer suas necessidades, etc, sem a ajuda de outras pessoas).

 

A melhor forma de você desconfiar se uma criança é autista é através da observação de pequenas ações que, enquanto para a maioria das pessoas pode ser uma “bobeira”, para a criança autista é uma forma de você identificar se ela apresenta risco de estar no espectro. Se tiver dúvidas, faça as perguntas abaixo (retiradas de um material do Hospital das Clínicas da UFPR), especialmente se a criança estiver entre os 0 e 3 anos de idade:

 

  • Ela mantém pouco contato visual?
  • Ela não aponta para algo que quer?
  • Ela brinca de modo diferente com brinquedos que seria esperado (por exemplo, pega um carrinho e fica com ele na mão, balançando ou girando as rodinhas)?
  • É sensível a ruídos além do esperado?
  • Não imita suas ações?
  • Não olha para o que você está apontando?
  • Caminha nas pontas dos pés ou agita as mãos excessivamente?
  • Fala menos do que o esperado para a sua idade, ou não fala?
  • Pega a mão do adulto e coloca sobre o que deseja? (“usa a pessoa como ferramenta”)
  • Não atende ordens simples, não bate palmas e/ou não dá tchau?
 

Obviamente, se uma criança faz alguns destes atos uma vez ou outra, não quer dizer que “pronto, ela está no espectro”! Mas a frequência com que ela faz um ou mais destes atos é que pode dizer se existe ou não algum risco.
Apenas um neuropediatra capacitado na área, com experiência no diagnóstico, é que poderá realmente dizer algo sobre o risco real ou não. Se você conhece alguém que tem um filho que apresenta algumas destas características, ou mesmo seu filho ou filha (lembrando que meninos tem 4x mais risco de se enquadrar no espectro em algum momento, e por isso a cor do autismo é o AZUL).
Quanto mais cedo for feito a identificação, melhor para a criança. Meu filho foi diagnosticado com 1 ano e meio, e mesmo hoje com sete anos continuamos em uma luta diária para estimulá-lo, propiciando o melhor desenvolvimento possível para seu quadro (autismo moderado). Nem quero imaginar como ele poderia estar se tivéssemos ficando pensando (COMO PENSAMOS NO COMECINHO), “ah, isto não é nada”!, “Ah, com o tempo ele melhora”!, “Toda criança tem seu tempo”!, etc, etc.

 

E se for um adulto? Como eu disse antes, muitas pessoas podem passar a vida toda sendo autistas e nem saber disso. Em alguns casos não há problema algum, mas dentre pessoas autistas leves não é incomum quadros severos de depressão. Nos piores casos, eles podem apresentar até mesmo alto risco de SUICÍDIO! (Não é exagero, estudos epidemiológicos feitos principalmente nos EUA confirmam este risco). Mas por quê?! Basicamente pela dificuldade que essas pessoas têm de se relacionar com outras, e de aceitar e compreender adequadamente regras sociais de relacionamento e conduta que a sociedade, em certos momentos corretamente mas em outros não, nos impõe. Porém, muitas pessoas que chegam a idade adulta e só aí passam a saber que estão nesta condição conseguem compreender melhor o motivo de muita coisa pelas quais elas passaram antes, e tendem a aceitar bem e lidar melhor com a situação. Assim, se você conhece uma pessoa que imagina que pode estar no espectro (um frequentador da loja onde joga, um parceiro do mesão, um colega do grupo de RPG, um colega da escola, etc), e tem uma certa proximidade com ele, converse com ele e comente sobre esta possibilidade... Você com certeza o estará ajudando muito, mas muito mesmo.

 

Para finalizar, caso alguém tenha se identificado com alguma situação equivalente as apresentadas, mas ainda tenha dúvidas, recomendo procurar o grupo AMA (Associação de Amigos dos Autistas) de sua região, ou um dos diversos grupos de apoio ou associações relacionadas ao tema, ou mesmo a APAE de sua cidade. E lembrem-se, jogar de azul com seu amigo pode ser ruim, mas ter um AMIGO AZUL nunca é!!

Abraços Narsetianos a todos!!

Comentários
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(Quote)
- 24/01/2020 11:39:23

Bom dia. Como estou escrevendo um artigo sobre autismo no momento, acabei lembrando de seu comentário. Envio uns links abaixo que podem ser de seu interesse. Abraços.]

Dia Mundial do Autismo: meninas autistas podem estar deixando de receber tratamento por falta de diagnóstico correto
https://www.bbc.com/portuguese/geral-47779342

The Experiences of Late-diagnosed Women with Autism Spectrum Conditions: An Investigation of the Female Autism Phenotype.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/27457364

Self-reported sex differences in high-functioning adults with autism: a meta-analysis
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5960195/

(Quote)
- 31/08/2019 07:56:15
Texto maravilhoso. Meu filho de 4 anos é autista e desde que foi dado o diagnostico com 2 anos de idade, fazemos de tudo para inseri-lo na sociedade. Hoje é um menino alegre, esperto, tem dificuldades na fala mas tenta se comunicar como pode(faz fono e musicoterapia). Ele é o que chamamos de autista leve/moderado. Joguei magic só ate o ano 2000 e depois parei, mas agora estou querendo retornar porque assim que ele começar a ler, vou ensiná-lo a jogar.
(Quote)
- 30/08/2019 13:09:44

Somos dois.

(Quote)
- 27/08/2019 18:46:39
Excelente artigo!
(Quote)
- 27/08/2019 16:04:30
Não consigo terminar de ler o artigo por que estou com os olhos cheios de lágrimas. Estamos suspeitando que meu filho Gohan de 3 anos se enquadra no "espectro" e estou com muita dificuldade de aceitar e sei que não aceitar vai ser pior.